Após 22 anos do brutal assassinato de Manfred von Richthofen e Marisia von Ruchthofen, Daniel Cravinhos, hoje com 43 anos, vai se tornar pai em breve. Ele é casado coma maquiadora Andressa Rodrigues, que está grávida de 11 semanas.
Em entrevista ao jornal O Globo, Daniel, que está em liberdade, contou que foi o instinto paterno que o motivou a escrever, uma carta aberta pedindo perdão a Andreas von Richthofen, de 36 anos, irmão de Suzane, de quem era muito amigo quando o crime ocorreu.
Suzane e Daniel foram condenados em 2004 a 39 anos de prisão. Desde 2017, ele cumpre em liberdade o restante da pena, que só expira em 2041. Cristian Cravinhos, irmão de Daniel, que foi o responsável por matar Marisia, foi condenado a 38 anos e 6 meses de reclusão. Suzane foi solta após cumprir 20 anos de pena.
Confira a entrevista feita pelo jornalista Ulisses Campbell:
Por que você decidiu escrever uma carta para Andreas?
“A maior prisão que existe é a psicológica. Estava detido em Tremembé, mas minha mente continuava livre aqui fora. Andreas está em liberdade, mas sua mente está aprisionada. Hoje, tenho maturidade e discernimento para seguir em frente. Gostaria que ele também pudesse continuar sua jornada, mesmo diante de todas as adversidades. Sinto-me profundamente mal em viver minha vida enquanto ele está estagnado por minha causa. Sinto-me moralmente obrigado a estender-lhe a mão”.
Não é petulância de sua parte tentar fazer contato com ele?
“Não, pois já ensaiamos esse contato por meio de um amigo em comum do aeromodelismo. Estou dando este passo mais ousado para que ele saiba do meu desejo. Agora, aguardo uma resposta”.
Você tem um sítio em São Roque perto de onde ele está morando. Por que escolheu uma carta aberta em vez de um contato pessoal?
“Esta tentativa de aproximação é muito delicada. Não sei como ele vai reagir. Logo após a tragédia, Suzane tentou um contato com o irmão e acabou sendo denunciada à polícia por ameaça. Se Andreas se sentir ameaçado por mim e me denunciar, posso perder o regime aberto e voltar à prisão. Por isso, optei por deixar minhas intenções claras e públicas. Compreendo que ele se sinta ameaçado por causa do que eu fiz com o seu pai. Não há como ignorar isso”.
Quais notícias você tem dele?
“Quando estava preso, soube que ele havia estudado, se formado, até feito doutorado. Estava trabalhando e namorando. Depois, vi uma reportagem mostrando ele correndo desorientado pela rua. Isso me afetou profundamente. Me senti responsável pelo que ele está passando. Recentemente, vi na imprensa que ele largou tudo e se isolou. Por isso, quero encontrá-lo. Quero acolhê-lo”.
O que você e Andreas têm em comum para estreitar laços?
“Sempre fomos muito unidos. Fazíamos tudo juntos. Gostamos dos mesmos esportes. Assim como ele, vivo em uma prisão mesmo estando livre, pois não consigo fazer tudo o que as pessoas fazem. Longe de mim querer me comparar a ele. Eu cometi um erro. Ele não cometeu erro algum e está desamparado, vivendo sozinho. Quero dar-lhe carinho”.
Comparar um crime hediondo a um erro não relativiza o que você fez?
“Sim, com certeza. Peço desculpas. Na verdade, uso a palavra “erro” como um mecanismo de defesa, e não para diminuir o que fiz. Tenho dificuldade até hoje de encarar o passado usando as palavras certas. Não consigo dizer “eu sou um assassino” ou “eu cometi um crime”. Essas expressões me machucam muito, me desestabilizam emocionalmente. Mas você tem razão. Não cometi um erro. Eu matei uma pessoa. Essa é a verdade (chora). Mesmo depois de pagar toda a minha pena, estarei com esse estigma de assassino”.
Você vai ser pai. O que vai dizer ao seu filho sobre o seu passado?
“Não vou esconder dele o que fiz. Seria impossível fazer isso em um mundo como o de hoje. Minha história está contada nos jornais, livros e filmes. Quando ele tiver idade para ouvir a verdade, eu mesmo vou me abrir e contar tudo”.
Como se sente atualmente?
“Carrego uma culpa colossal e devastadora. As pessoas não fazem ideia. Posto fotos correndo de moto e customizando veículos de corrida capacetes. Mas isso não significa que estou bem. Os eventos passados continuam a afetar a mim e à vida das pessoas envolvidas, mesmo após muitos anos. Estou tentando viver com os meus fantasmas. Não é fácil. Nem espero que as pessoas entendam o que fiz, porque o que fiz não tem explicação, não tem perdão nem clemência”.
Você é hostilizado na rua?
“Já fui parado em blitzes na cidade e, surpreendentemente, fui bem tratado pelos policiais. No entanto, os profissionais de saúde me detestam. Sempre que preciso de atendimento médico, sou maltratado. Outro dia, fui tirar sangue e o técnico do laboratório fez um estrago proposital na minha veia. Já aconteceu de precisar ir ao pronto-atendimento de um hospital e ser hostilizado. Fiquei tão assustado que não voltei mais. Rezo para não adoecer ou precisar de uma cirurgia e não voltar mais depois da anestesia. Em dezembro, sofri um acidente de moto na avenida 23 de Maio e fiquei com um corte grande no braço. Precisava ir ao hospital para dar pontos, mas não tive coragem. Fiz a sutura em casa com cola Super Bonder e fita durex. Não estou me vitimizando, pois esse papel nem me cabe diante do que fiz. Queria apenas relatar como é meu dia a dia”.
Como assim?
“Quero dizer às pessoas que cometi um crime, me arrependi profundamente e pago por ele até hoje. Não sou uma pessoa feliz. Apenas tento recomeçar a vida como um homem comum. Tento praticar o bem sempre para me redimir. Mas é difícil manter a cabeça erguida, pois sou julgado diariamente. Outro dia, uma tia me virou as costas porque acha que não mereço estar bem, me cuidando. Para ela, eu deveria estar sempre de cabeça baixa. É assim que as pessoas querem me ver”.
O que você vê quando se olha no espelho?
“Vejo o que as pessoas veem. Mas luto todos os dias para escapar dessa imagem refletida. É uma missão impossível. Eu matei uma pessoa brutalmente. Vou viver com isso até o fim dos meus dias. Tento superar o que fiz para viver o resto da minha vida em paz, mesmo que não mereça esse sossego. Apenas gostaria que as pessoas soubessem que não sou mais aquele jovem inconsequente que cometeu um crime. Hoje, sou outra pessoa. Quero seguir em frente do jeito que for possível”.
As pessoas te reconhecem na rua?
“Não, porque sou muito diferente da época do crime. Era muito magro e jovem em 2002. Hoje estou forte e meus cabelos são grisalhos. Envelheci. Geralmente as pessoas se aproximam sem saber quem eu sou. Quando descobrem, ficam surpresas, mas continuam se relacionando normalmente. Se a pessoa chega já sabendo quem eu sou, geralmente rola uns xingamento”.
E como você lida com o público?
“Todo dia é uma batalha. As pessoas não gostam de me ver trabalhando, fazendo algo legal. Às vezes, customizo uma moto ou capacete e recebo muitos elogios do cliente. Mas aí vem a amiga do cara e diz o seguinte: “Realmente, ficou muito legal, mas você reparou que quem fez esse trabalho foi um assassino?”. Isso é humilhante e machuca muito. Mas acho que esse tipo de golpe faz parte da minha penitência. Faz parte do jogo de sobrevivência aqui fora para um egresso da penitenciária”.
Você é rejeitado no seu grupo de motovelocidade?
“Hoje não mais. No início, entrei em um grupo de dez pessoas e andávamos de moto pelas estradas. As pessoas me conheciam apenas como Daniel. Depois, descobriram que eu era um Cravinhos. Um cara perguntou se eu havia matado o pai da Suzane. Falei a verdade. Ouvi barbaridades, fui chamado de assassino e tudo mais. Tive de sair do grupo. Mas, como eu disse, faz parte do jogo levar esse tipo de pancada”.
Diante dessas adversidades, como conseguiu se colocar no mercado de trabalho?
“No começo, pintava motos e capacetes anonimamente. Era muito elogiado. Mas as pessoas descobriram e passaram a me rejeitar. Um empresário me deu uma chance e me permitiu trabalhar na oficina da equipe de corrida dele. Na época, ele me disse: ‘trabalhe aqui. Você vai sangrar, mas não vai morrer’. Hoje, está mais tranquilo. Mostro meu trabalho nas redes sociais e sou mais aceito pelo público”.
Em poucas palavras, por que você matou o pai da Suzane?
“Não tem como apontar um único motivo. Eu era tão idiota e imaturo na época que não tinha uma razão específica. Posso dizer que falhei não só com as vítimas, mas também com Andreas, com minha família e comigo mesmo. Se eu fosse homem e não um moleque, teria resolvido meus conflitos de outra forma”.
E aquela tese de que você e Suzane planejaram o crime porque os pais dela eram contra o namoro de vocês?
“Isso é a maior bobagem que poderíamos apontar como motivação. As razões são um conjunto de fatores que incluem paixão, possessão, irresponsabilidade, impulsividade, descontrole, inconsequência, raiva, imaturidade e cegueira. Suzane mentiu, dizendo que o pai dela deu apenas um tapa em seu rosto. A verdade é que ela sofreu uma série de agressões em casa. Não estou justificando o crime, apenas relatando um fato que testemunhei para responder melhor à sua pergunta”.
Então a premissa de que você foi manipulado por ela não existe mais?
“Depois de tanto tempo, não é mais possível sustentar essa ideia. Não vou minimizar o que fiz. Muito menos serei um canalha e jogarei a culpa toda para cima dela. Nós três (Suzane, Daniel e Cristian Cravinhos, irmão dele) temos encargos iguais no crime. Essa é a verdade. A ideia foi minha e de Suzane. Não sou oportunista para, nesse estágio da vida, tirar o meu corpo fora para diminuir as minhas responsabilidades. Meu maior dilema é justamente esse: como fiz algo tão terrível sem ter sido forçado por ninguém?”.
Há quem diga que você e Suzane têm até hoje um laço afetivo muito forte por causa do crime. Isso é verdade?
“O crime nos uniu, de fato. Mas essa união não é sentimental. Minha vida amorosa com ela está totalmente resolvida, embora nunca tenhamos rompido pessoalmente. Não sinto coisa alguma por ela. Nem ódio, nem carinho, nem desprezo, nem nada”.
O filho de Suzane nasceu praticamente no dia do seu aniversário. E seu filho agora poderá nascer no dia do aniversário dela, em novembro. Como você lida com essas coincidências?
“Como não tenho mais qualquer vínculo com a Suzane, essas questões de data não me afetam em nada. Mas confesso que não gostaria que meu filho fizesse aniversário no mesmo dia que ela”.
Se você estiver no elevador e Suzane entrar. O que faria?
“Sairia imediatamente, às pressas e sem olhar para trás”.